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PROJETO DE LEI N.º 278/2022

 

“DISPÕE SOBRE PERCENTUAL MÍNIMO DE CONTRATAÇÃO DE ARTISTAS CEARENSES OU ATUANTES  NO CEARÁ E DE ARTISTAS QUE EXPRESSEM A CULTURA CEARENSE.”

 

A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ DECRETA:

 

Art. 1º. Os eventos culturais, shows, festivais e demais formas de eventos custeados, de forma total ou parcial, com verbas públicas do Estado do Ceará ou através dos instrumentos do regime de fomento cultural previstos na legislação estadual deverão observar, em percentual mínimo de 50% (cinquenta por cento), a contratação de: 

I - artistas ou grupos artísticos cearenses ou atuantes no Ceará e que cultivem expressões culturais, independentemente da linguagem, expressão artística, gênero musical ou especificidade e atuação empregada, que sejam reconhecidas como bens componentes do patrimônio cultural imaterial do estado; ou

II - Artistas ou grupos artísticos cearenses ou atuantes no Ceará que estejam cadastrados há mais de 2 (dois) anos na plataforma Mapa Cultural do Ceará, mantida pela Secretaria da Cultura do Ceará.

Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

 

 

RENATO ROSENO

DEPUTADO

 

 

 

JUSTIFICATIVA:

 

O presente projeto de lei tem por objetivo instituir direito cultural consistente na reserva de percentual de 50% nas contratações realizadas para produção de shows, festivais e outras formas de eventos culturais promovidos, de forma total ou parcial, com verbas públicas estaduais ou através dos instrumentos do regime próprio de fomento previsto na legislação estadual, para artistas e grupos artísticos cearenses e com atuação no Ceará e que promovam a cultura cearense. Busca, assim, contribuir para o fortalecimento das expressões artísticas e culturais do estado e para a sua preservação, garantindo condições materiais de reprodução e o acesso da população cearense ao patrimônio cultural e artístico do estado.

 A proposta replica normas  existentes em outros estados da federação. Em específico as Leis nº 13.368, de 14 de julho de 2015, do estado da Bahia e nº 14.679, de 24 de maio de 2012, do estado de Pernambuco, além de normas municipais, como a Lei nº 9.266, de 2 de agosto de 2017, do Município de Salvador. Inspirada em normas de outros entes subnacionais, contudo, a proposta que ora se apresenta se adapta à realidade e aos anseios de artistas cearenses e ao direito da população do estado de fruição das expressões artísticas e culturais que expressam a cultura local.

No que concerne à constitucionalidade formal da proposta, cumpre destacar que, nos termos da Constituição Federal, é competência comum da União, dos Estados e dos Municípios proteger os bens de valor artístico e cultural, impedir sua destruição e descaracterização e proporcionar à população os meios para o seu acesso. Com efeito, esta é a norma insculpida no art. 23 da Carta Magna:

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

(...)

III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

V -  proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à inovação;  

(...)

Ao tratar das competências legislativas concorrentes entre a União e os Estados, no art. 24, o texto constitucional inclui expressamente a cultura, assentando a possibilidade de que os mencionados entes subnacionais editem leis sobre a matéria, no âmbito do seu interesse regional. É nesse sentido que se insere a proposição em epígrafe. Com o objetivo de fortalecer os mecanismos de proteção e preservação das expressões artísticas cearenses, garante à população do estado o direito de fruição de tais expressões no âmbito dos eventos culturais promovidos com recursos públicos estaduais ou fomentados através do regime próprio previsto na legislação. Respeitando, assim,  as competências estaduais constitucionalmente asseguradas ao Estado-membro.

Uma vez respeitadas as normas constitucionais que disciplinam a repartição de competências entre os entes da federação, verifica-se que tampouco encontra-se óbice à regular tramitação e aprovação do projeto de lei em epígrafe a partir das normas da Constituição Estadual. Com efeito, o direito a ser instituído pela lei que se pretende aprovar não trata de questões inseridas no rol de matérias a que o art. 60, §2º da Constituição Estadual reserva ao chefe do Executivo a competência privativa para deflagrar o processo legislativo, uma vez que se  disciplina direito cultural à preservação e à fruição das expressões artísticas e culturais locais.

A Constituição Federal assegura a todos o direito à cultura, estabelecendo ao Estado o dever de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e de apoiar  e incentivar a valorização e difusão das manifestações culturais. Atento à necessidade de especial proteção das manifestações culturais populares, expressões da cultura nacional, o constituinte inseriu no §1º do art. 212 expressa menção ao tema, assentando o dever do Estado na matéria.

É nessa seara que se inscrevem iniciativas como a que se propõe no presente projeto de lei. Constitui espécie de ação afirmativa, gênero normativo cuja constitucionalidade já foi amplamente reconhecida no Brasil e que pode ser compreendida como um conjunto de

políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade 

(Ministro do STF Joaquim B. Barbosa Gomes. Citado no artigo Sobre a Implementação de Cotas e Outras Ações Afirmativas para os Afro-brasileiros, de Luiz Fernando Martins da Silva. Disponível em: https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarTesauro.asp?txtPesquisaLivre=A%C3%87%C3%83O%20AFIRMATIVA  Acesso em 05.07.2022.)

A reserva de parte das contrações realizadas com verba pública estadual ou por meio dos instrumentos do regime próprio de fomento previstos na legislação garantindo que grupos e artistas cearenses tenham condições de reproduzir suas práticas culturais, caracterizadoras da identidade cearense. Caminha, portanto, no sentido de que o estado do Ceará cumpra com seu dever de garantia do pleno exercício dos direitos culturais aos seus cidadãos, aí entendidos tanto aqueles que fazem, por meio de seu ofício, a cultura do estado, como o público, que terá assegurado o seu direito à fruição de tais bens culturais.

Sabe-se que a conjuntura de globalização e integração dos mercados caracterizadora da sociedade contemporânea incide também sobre os processos de produção e reprodução das expressões culturais. Nesse sentido, as condições de convivência entre manifestações não plenamente integradas à indústria cultural, caracterizadoras de identidades das diferentes regiões do país, e a lógica impressa pelo mercado cultural colocam aquelas em situação de fragilidade, o que demanda atuação efetiva do poder público.

Mesmo que se pudesse entender que a proposição confronta outros direitos fundamentais, como a isonomia em sua acepção formal e a livre iniciativa, tem-se que o ordenamento jurídico brasileiro não comporta direitos absolutos. Com efeito, é da análise concreta da realidade social que se deve retirar a solução para os aparentes conflitos entre os direitos assegurados no ordenamento. 

Verifica-se na espécie que, ao propor reserva de percentual das contratações realizadas no âmbito de eventos promovidos de modo total ou parcial com recursos públicos estaduais, a propositura em apreço realiza os comandos  constitucionais de redução das desigualdades e de garantia dos direitos culturais. Por outro lado, não produz ônus excessivos no que tange a outros direitos constitucionais, como os mencionados anteriormente. Na realidade, possibilita-se o seu pleno exercício. 

Nessa toada importa fazer menção a dois pareceres da douta procuradoria jurídica desta Casa, proferidos no âmbito dos projetos de lei nº 378/2021 e nº 503/2021 que tratam de matéria assemelhada à que ora se analisa. O órgão consultivo analisou então a legalidade e a constitucionalidade de proposições de autoria de parlamentares que tratavam, respectivamente, do estabelecimento de prioridade no âmbito do atendimento em repartições públicas estaduais e do estabelecimento de cota mínima de contratação de pessoal em empresas contratadas pelo poder público. Nas duas ocasiões o parecer foi favorável à legalidade e constitucionalidade das matérias.

Com efeito, o PL nº 503/2021, de autoria da deputada Augusta Brito e do deputado Elmano Freitas, propôs alterar a Lei nº 15.854, de 24 de setembro de 2015, com o intuito de incluir a contratação de percentual mínimo de mulheres vítimas de violência doméstica em situação de vulnerabilidade social pelas empresas prestadoras de serviços como critério de contratação pela administração pública estadual. Criou, desse modo, inequívoca distinção e reserva de vagas no âmbito de contratações realizadas com verba pública estadual.

Em análise tombada às fls. 11/16 a procuradoria assinalou que a proposição dava realização ao mandamento constitucional da igualdade e não implicava custo de elevada monta ao Poder Executivo, de modo que não usurpou a competência privativa estabelecida no art. 60, § 2º da Constituição Estadual. Desse modo, após regular tramitação, a matéria foi convertida na Lei nº17.987, de 18 de março de 2022.

Verifica-se, então, que a proposição que ora se apresenta encontra-se, inclusive, em consonância com precedentes desta Casa Legislativa, de modo que não há, do ponto de vista jurídico, impedimento à sua regular tramitação, possibilitando a sua discussão pelos parlamentares estaduais.

Pelas razões expostas, o parlamentar subscritor conta com o apoio dos nobres pares desta Casa na aprovação da proposição que ora se apresenta. 

 

 

RENATO ROSENO

DEPUTADO