PROJETO DE LEI N.º 111/2021
“DISPÕE SOBRE A SUSPENSÃO DO CUMPRIMENTO DE MEDIDAS ADMINISTRATIVAS NO ÂMBITO DO ESTADO DO CEARÁ QUE RESULTEM EM DESPEJOS, DESOCUPAÇÕES OU REMOÇÕES FORÇADAS ENQUANTO PERDURAR O ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA DECORRENTE DA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS”.
A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ APROVA:
Art. 1º Enquanto perdurar o estado de calamidade pública reconhecido por decreto federal, estadual ou municipal decorrente da pandemia do novo coronavírus, fica suspenso no âmbito do Estado do Ceará o cumprimento de medidas administrativas pelo Poder Executivo que resultem em despejos, desocupações ou remoções forçadas em imóveis públicos ou privados, urbanos ou rurais, ressalvados única e exclusivamente casos de risco iminente à vida, à segurança ou à integridade física, devidamente embasados em relatórios técnicos constantes em processo administrativo.
Parágrafo Único. Considera-se nula a medida administrativa que contrarie o disposto no caput deste artigo, estando sujeitos à responsabilização os agentes públicos que executarem o ato, bem como seus superiores hierárquicos caso comprovada ordem, consentimento ou omissão deliberada.
Art. 2º A suspensão de despejos, desocupações ou remoções forçadas se aplica a imóveis que sirvam de moradia ou que consistam em área produtiva pelo trabalho individual ou coletivo e tem como objetivo evitar ações administrativas que resultem em pessoas e famílias desabrigadas bem como garantir a proteção do direito à moradia adequada e segura durante a pandemia do novo coronavírus, promovendo:
I – a garantia de habitação, visando o cumprimento do isolamento social;
II – a manutenção do acesso a serviços básicos de comunicação, energia elétrica, água potável, saneamento e coleta de lixo;
III – a proteção contra intempéries climáticas ou outras ameaças à saúde e à vida;
IV – o acesso aos meios de subsistência, inclusive à terra, a fontes de renda e ao trabalho;
V – a privacidade, segurança e proteção contra qualquer tipo de violência;
VI – a proteção especial de indivíduos e segmentos populacionais mais impactos pela pandemia e seus desdobramentos socioeconômicos.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
RENATO ROSENO
DEPUTADO
JUSTIFICATIVA:
Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, o direito à moradia é reconhecido como um direito humano. Em seu artigo 25, o diploma assegura que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação (...)” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).
Na década de 60, importantes tratados internacionais foram editados, os quais inclusive foram ratificados pelo Brasil, conferindo maior proteção e efetividade ao direito à moradia. A Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em 1965, normatizou o compromisso dos Estados Partes em proibir e eliminar a discriminação racial através da garantia de uma série de direitos, dentre os quais está incluso o direito à habitação (artigo V, e, iii). Ressalte-se que tal Convenção foi promulgada em âmbito nacional através do Decreto nº 65.810, de 8 de dezembro de 1969.
Ainda na década de 60, precisamente no ano de 1966, foi publicado o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Este tratado, além de reconhecer direitos humanos já consagrados em normas anteriores, citadas na presente justificativa, aduziu que aos Estados compete a garantia de condições para que direitos possam ser exercidos. Nesse sentido, transcreve-se o dispositivo que versa sobre o direito à moradia (PIDESC, 1966):
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento. (grifo nosso)
O PIDESC foi promulgado no Brasil mediante publicação do Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, sendo um dos principais tratados internacionais que protege o direito à moradia introduzido diretamente no ordenamento jurídico pátrio após a Constituição de 1988. Note-se que o referido Pacto trata de “moradia adequada”, importante distinção que paulatinamente foi sendo regulamentada a fim de se conceber o direito à moradia como efetivamente interdependente a outros direitos humanos.
A título ilustrativo, menciona-se, ainda, outros tratados internacionais que protegem o direito à moradia e que foram ratificados pelo Brasil. São eles a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (artigo 14, 2, h), em 1979, ratificada pelo Brasil em 1984; e a Convenção sobre os Direitos das Crianças (artigo 27, 3), em 1989, ratificada pelo Brasil em 1990.
Ainda no plano do direito internacional público, ressalte-se a realização das Conferências das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Hábitats). Em 1976, foi realizada em Vancouver sua primeira edição (Hábitat I), a qual produziu a Declaração de Vancouver. Tal documento introduziu o conceito de “assentamentos humanos”, relacionando suas condições com a qualidade de vida da população e a satisfação de suas necessidades básicas. Nesse sentido, a Declaração indica políticas públicas e estratégias a serem tomadas pelo Estado a fim de que as populações residentes em assentamentos humanos possam ter melhores condições de vida, notadamente mediante a efetivação dos direitos à saúde, educação, higiene, água, energia, alimentação, moradia e ao emprego (BONALDI, 2018).
A segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Hábitat II), realizada em 1996 na cidade de Istambul, na Turquia, aprofundou a discussão sobre direito à moradia na perspectiva coletiva, sobretudo pelo avanço do processo de urbanização em escala global. Fruto do evento, foram publicados dois documentos, quais sejam a Declaração de Istambul sobre os Assentamentos Humanos e a Agenda Habitat.
A Declaração reafirma o compromisso dos Estados que participaram da Conferência em garantir moradia adequada a todos e em tornar os assentamentos humanos mais “seguros, saudáveis, habitáveis, equitativos, sustentáveis e produtivos” (Declaração de Istambul sobre os Assentamentos Humanos, 1996). Para isso, o documento prevê parceria com autoridades locais, parlamentares, setor privado, sindicatos de trabalhadores e organizações não-governamentais, bem como a mobilização de recursos financeiros nacionais e internacionais.
A Agenda Habitat consiste em uma espécie de “Plano de Ação Mundial”, na qual é definida moradia adequada como segura e saudável, sendo uma condição para o bem-estar físico, psicológico, social e econômico do ser humano. São citados como principais problemas percebidos no mundo no que tange o direito à moradia o desenvolvimento urbano descoordenado, a insuficiência de recursos financeiros, a expansão de assentamentos irregulares, o uso indevido do solo e a posse irregular da terra (BONALDI, 2018).
No que se refere à implementação do direito à moradia, a Agenda Habitat, notadamente no Plano de Ação Global, prevê a busca de segurança jurídica da posse, a adoção de medidas que tenham como objetivo tornar as moradias habitáveis e acessíveis e a promoção de sistemas de transporte capazes de melhorar a acessibilidade da população a bens, serviços e trabalho. A fim de atingir os objetivos constantes na Agenda Habitat e na Declaração de Istambul sobre Assentamentos Humanos, destacam-se a concessão de subsídios, aluguéis ou outras formas de auxílio-moradia, a integração das políticas habitacionais com as políticas de desenvolvimento socioeconômico e o estímulo à participação popular.
Percebe-se, portanto, o amplo escopo normativo que protege o direito à moradia em plano internacional, cuja regulamentação consiste não só em conferir segurança jurídica ao domicílio particular, mas sim abrange a destinação de políticas públicas que busquem efetivar o bem-estar da população e a satisfação de necessidades básicas, especialmente relativas à população mais vulnerabilizada socioeconomicamente.
Fruto do respaldo normativo do direito à moradia em plano internacional, a Constituição Federal de 1988 o recepcionou em seu artigo 6º através da promulgação da emenda constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifo nosso)
Embora o direito à moradia tenha sido incluído no dispositivo constitucional que versa sobre direitos sociais apenas em 2000, a Constituição já continha em sua redação dispositivos que o protegiam. O artigo 7º, IV, ao versar sobre as demandas do trabalhador e de sua família que deveriam ser satisfeitas com o salário mínimo, elencou a moradia como uma necessidade vital básica. Ademais, cita-se a promoção de programas de moradia e de melhoria das condições habitacionais no rol de políticas cuja competência é comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios.
Apesar do seu inquestionável status de direito constitucional, a moradia é um dos mais graves problemas sociais brasileiros. Segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), havia déficit de aproximadamente 8 milhões de moradias em 2019 no território nacional. O estudo da entidade teve como base de dados a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Contraditoriamente, o montante de déficit habitacional consiste no mesmo número de domicílios vagos existentes no Brasil – 8 milhões, segundo dados da Fundação João Pinheiro em levantamento feito em 2015. Embora seja uma pesquisa feita há 6 anos atrás, a tendência é que a existência de imóveis sem ocupação seja maior, tendo em vista o arrefecimento e até descontinuidade de políticas habitacionais, em especial o Minha Casa Minha Vida. Logo, o problema relativo ao déficit habitacional não se explica por ausência objetiva de terras e de imóveis, mas sim pela grave desigualdade social e, em particular, pela concentração de renda, que se expressa no campo habitacional pela especulação imobiliária e pela existência de latifúndios improdutivos na zona rural.
A correspondência numérica entre pessoas sem casas e casas sem pessoas, aliada com a ausência de políticas habitacionais efetivas, fez com que centenas e milhares de famílias passassem a ocupar terras e imóveis sem uso. Tais atos não são “badernas” ou “vagabundagem”, como rotineiramente são estigmatizadas famílias e movimentos sociais, mas sim ações decorrentes da necessidade objetiva de se ter uma casa para morar e viver com dignidade.
Os valores subjacentes à estigmatização acima referida dizem respeito à percepção de que a propriedade privada é um princípio superior aos demais que regem nosso ordenamento jurídico. Entretanto, o direito à propriedade não é absoluto no Brasil. O artigo 5º, XXIII, da Constituição Federal aduz que “a propriedade atenderá a sua função social”, ao passo que a Carta Magna assegura como princípio da ordem econômica e financeira nacional a função social da propriedade (artigo 170, III). Tais previsões não são apenas principiológicas, mas sim dotadas de instrumentos jurídicos concretos, como a usucapião (artigo 183) e a desapropriação (artigo 184).
O direito processual civil, codificado pelo Código de Processo Civil, também é dotado de instrumentos que protegem o direito à moradia face ações de reintegração de posse, usualmente movida contra famílias e movimentos sociais que ocupam terras e imóveis sem que sua função social seja exercida. O artigo 565 do novo CPC regulamenta litígios coletivos pela posse, a saber:
Art. 565. No litígio coletivo pela posse de imóvel, quando o esbulho ou a turbação afirmado na petição inicial houver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação, a realizar-se em até 30 (trinta) dias, que observará o disposto nos §§ 2º e 4º.
§1º Concedida a liminar, se essa não for executada no prazo de 1 (um) ano, a contar da data de distribuição, caberá ao juiz designar audiência de mediação, nos termos dos §§ 2º a 4º deste artigo.
§2º O Ministério Público será intimado para comparecer à audiência, e a Defensoria Pública será intimada sempre que houver parte beneficiária de gratuidade da justiça.
§3º O juiz poderá comparecer à área objeto do litígio quando sua presença se fizer necessária à efetivação da tutela jurisdicional.
§4º Os órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, de Estado ou do Distrito Federal e de Município onde se situe a área objeto do litígio poderão ser intimados para a audiência, a fim de se manifestarem sobre seu interesse no processo e sobre a existência de possibilidade de solução para o conflito possessório.
§5º Aplica-se o disposto neste artigo ao litígio sobre propriedade de imóvel.
Na pandemia de COVID-19, o direito à moradia é fundamentalmente importante para que a proliferação do vírus seja mitigada. A ausência de habitação bem como sua precariedade, que se expressa em parcas condições de saneamento básico, acesso à água, coabitação, dentre outras, põem em risco medidas básicas de prevenção ao novo coronavírus. Não por acaso, embora o índice de novos casos de COVID-19 seja maior em bairros de classe média e alta, a taxa de óbitos é mais grave em periferias urbanas que não possuem acesso regular a serviços públicos básicos.
A prática de remoções, seja judicial ou administrativa, acarreta inevitavelmente a violação de medidas sanitárias decretadas por autoridades estaduais e municipais de prevenção e enfrentamento à pandemia do novo coronavírus. O artigo 2º do decreto nº 33.965, de 04 de março de 2021, que reestabelece, no município de Fortaleza, a política de isolamento social rígido como medida de enfrentamento à COVID-19, indica que:
Art. 2º Para fins da política de isolamento social rígido a que se refere o art. 1º, deste Decreto, serão adotadas, excepcional e temporariamente, as seguintes medidas:
I – restrições ao desempenho de atividades econômicas e comportamentais;
II – dever especial de confinamento;
III – dever especial de proteção por pessoas do grupo de risco;
IV – dever especial de permanência domiciliar;
V – controle da circulação de veículos particulares;
VI – controle da entrada e saída do município. (grifo nosso)
A prática de despejos, acometendo pessoas e grupos populacionais, ocasiona frontalmente a violação a, pelo menos, 3 (três) das 6 (seis) medidas constantes no decreto estadual que estabeleceu o isolamento social rígido como política de enfrentamento à COVID-19. Não faria sentido o Poder Público executar atos administrativos que desrespeitem as próprias normas emanadas de enfrentamento ao maior problema sanitário que a humanidade vivenciou nas últimas décadas. Ao contrário, todos os esforços estatais devem se voltar a possibilitar o confinamento, proteger pessoas pertencentes a grupos de risco e viabilizar a permanência domiciliar.
Em atenção a tal realidade, mais de 100 (cem) entidades da sociedade civil e movimentos sociais constituíram a campanha Despejo Zero, “voltada à suspensão dos despejos ou remoções, sejam elas fruto da iniciativa privada ou pública, respaldada em decisão judicial ou administrativa, que tenha como finalidade desabrigar famílias e comunidades, urbanas ou rurais”. A campanha foi lançada no dia 23 de julho de 2020, executando uma série de ações desde então, dentre as quais se inclui a incidência junto a parlamentares federais, estaduais e municipais para que apresentem projetos de lei visando a suspensão de despejos durante o período de calamidade pública decorrente da pandemia de COVID-19.
O projeto de lei ora protocolizado se insere nesse contexto, juntando-se a mais de 15 (quinze) proposições similares que foram apresentadas em Casas Legislativas estaduais, além de projetos semelhantes em âmbito federal e municipal. Destacam-se o PL 169, tramitando na Assembleia Legislativa do Amazonas; lei nº 6.657/20, do Distrito Federal; PL 123/20, tramitando na Assembleia Legislativa do Maranhão; PL 1643, tramitando na Assembleia Legislativa de Minas Gerais; lei nº 11.676/20, do estado da Paraíba; PL 191, tramitando na Assembleia Legislativa do Paraná; PL 1010/20, tramitando na Assembleia Legislativa de Pernambuco; PL 2022, aprovado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro; e PL 146, tramitando na Assembleia Legislativa de São Paulo. Ademais, em âmbito local, tramita proposição dispondo sobre a suspensão de desocupações e remoções forçadas promovidas pelo Poder Público durante a pandemia causada pela COVID-19 na Câmara Municipal de Fortaleza, apresentada pela Mandata coletiva Nossa Cara.
Ressalte-se que o projeto de lei apresentado não viola competência federativa, visto que não legisla sobre direito processual civil (artigo 22, I, da Constituição Federal) ao versar apenas sobre despejos administrativos, e não aqueles determinados por decisão judicial. Ademais, a proposição não incorre em vício de iniciativa por não dispor sobre as matérias arroladas nas alíneas do parágrafo 2º do artigo 60 da Constituição do Estado do Ceará.
Portanto, pelo mérito do projeto, visando contribuir decisivamente para que o Estado do Ceará seja dotado de instrumentos normativos que resguardem a dignidade humana e possibilitem a prevenção ao novo coronavírus, e por enquadrar-se nas previsões constitucionais relativas à competência federativa e à iniciativa legislativa, não padecendo de inconstitucionalidade formal, pugna-se aos Pares a aprovação do ora projeto de lei que visa a suspensão de despejos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade pública reconhecido em virtude da pandemia de COVID-19.
RENATO ROSENO
DEPUTADO