PROJETO DE LEI N.° 294/20
“DISPÕE SOBRE A CASSAÇÃO DA INSCRIÇÃO NO CADASTRO DE CONTRIBUINTES DO IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES RELATIVAS À CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SOBRE PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTERMUNICIPAL E DE COMUNICAÇÃO DE EMPRESAS QUE SE UTILIZEM DE MÃO DE OBRA EM CONDIÇÃO ANÁLOGA À ESCRAVA OU INFANTIL E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS. ”
A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ DECRETA:
Art. 1º - Fica cassado a inscrição no cadastro de contribuintes do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS, dos estabelecimentos que produzam ou comercializarem produtos em cuja fabricação tenha havido, em qualquer de suas etapas de industrialização, condutas que configurem redução de pessoa a condição análoga à de escravo ou trabalho infantil.
Art. 2° - O descumprimento do disposto no artigo 1º será apurado na forma estabelecida pela Secretaria da Fazenda, assegurado o regular procedimento administrativo ao interessado.
Parágrafo único. Não será condenada nos termos desta lei a pessoa jurídica e física que não tenha a possibilidade de saber da utilização do trabalho em condições análogas à escravidão ou trabalho infantil na produção de produtos que comercialize.
Art. 3° - Esgotada a instância administrativa, o Poder Executivo divulgará, através do Diário Oficial do Estado, a relação nominal dos estabelecimentos comerciais penalizados com base no disposto nesta Lei, fazendo constar, ainda, os respectivos números do Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica CNPJ, endereços de funcionamento e nome completo dos sócios.
Art. 4º - A cassação da eficácia da inscrição do cadastro de contribuintes do ICMS, prevista no artigo 1º, implicará aos sócios, pessoas físicas ou jurídicas, em conjunto ou separadamente, do estabelecimento penalizado:
I – O impedimento de exercerem o mesmo ramo de atividade, mesmo que em estabelecimento distinto daquele;
II – A proibição de entrarem com pedido de inscrição de nova empresa, no mesmo ramo de atividade;
Parágrafo único - As restrições previstas nos incisos prevalecerão pelo prazo de dez anos, contados da data de cassação.
Art. 5º - Fica instituído o selo estadual, a ser regulamentado por ato do poder executivo, para as empresas que não cometam o crime de redução a condição análoga à de trabalho escravo ou infantil.
Art. 6° - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Art. 7° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
NEZINHO FARIAS
DEPUTADO
JUSTIFICATIVA
Quanto a iniciativa da matéria é de se frisar que a função de legislar é atribuída, de forma típica, ao Poder Legislativo, o que pressupõe que a este Poder deva ser dada a possibilidade de deflagrar o processo legislativo, exceto quando haja expressa previsão em sentido contrário.
Dito isto, resta claro de que as hipóteses constitucionais de iniciativa privativa formam um rol taxativo. E, mais ainda, configuram a exceção, devendo, portanto, ser interpretadas de forma restritiva.
É válida a clássica lição da hermenêutica, segundo a qual as exceções devem ser interpretadas de forma restritiva e que, portanto, os casos de iniciativa privativa devem ser elencados em rol taxativo. Nesse sentido, e ainda corroborando este entendimento o Supremo Tribunal Federal já pacificou a jurisprudência de que:
A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa. na medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca. (STF, Pleno, ADI-MC n° 724/RS, Relator Ministro Celso de Mello, DJ de 27.4.2001 (original sem grifos).
Como asseverou o ministro Gilmar Mendes durante o julgamento da ADI n° 2.417/SP:
... uma interpretação ampliativa da reserva de iniciativa do Poder Executivo, no âmbito estadual, pode resultar no esvaziamento da atividade legislativa autônoma no âmbito das unidades federativas.
Dito isto, é cediço que a partir do princípio da simetria, na legislação estadual, como iniciativa do executivo, aplicam-se as mesmas hipóteses de iniciativa privativa reservada ao Presidente da República elencadas na Constituição Federal, a saber:
Art. 61. ...
§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
I - fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas;
II - disponham sobre:
a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;
b) organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios;
c) servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;
d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 84, VI;
f) militares das Forças Armadas, seu regime jurídico, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva.
Malgrado o projeto em tela não trate de obrigações tributárias principais, há de se mencionar que não há de se perquirir eventual inconstitucionalidade do projeto por vício de iniciativa, uma vez que, o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente decidido que não há prerrogativa constitucional privativa do chefe do Poder Executivo em tratar de matérias de natureza orçamentária, in verbis:
(...) não mais assiste, ao chefe do Poder Executivo, a prerrogativa constitucional de fazer instaurar, com exclusividade, em matéria tributária, o concernente processo legislativo. (...) sob a égide da Constituição republicana de 1988, também o membro do Poder Legislativo dispõe de legitimidade ativa para iniciar o processo de formação das leis, quando se tratar de matéria de índole tributária, não mais subsistindo, em consequência, a restrição que prevaleceu ao longo da Carta Federal de 1969 (art. 57, I) (...). [RE 328.896, rel. min. Celso de Mello, j. 9-10-2009, dec. monocrática, DJE de 5-11-2009.]= RE 424.674, rel. min. Marco Aurélio, j. 25-2-2014, 1ª T, DJE de 19-3-2014
Por esse motivo o Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADI 5768/CE, declarou a inconstitucionalidade do art. 60, §2º, II, d, da Constituição do Estado do Ceará, na redação dada pela Emenda nº 61, de 19 de dezembro de 2008.
Dessa forma, é oportuno destacar a competência legislativa para tratar da matéria exposta acima. No que diz respeito aos impostos e seus tramites, bem como tudo que está relacionado com isso é regulado pelo direito tributário. Sobre esse ramo do direito a Constituição da República Federativa do Brasil deixa claro que a competência legislativa é concorrente entre a União, os Estados e Distrito Federal. Veja-se:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
(...)
Assim, fica demonstrada a competência legislativa para tratar da matéria sobre a cassação da inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS de qualquer empresa que faça uso direto ou indireto de trabalho escravo ou em condições análogas. A Constituição Federal, de forma mais especifica, em seu artigo 155, inciso II colocou de forma explicita a competência estadual para tratar sobre o ICMS, bem como todas as questões relativas ao referido imposto. Note-se:
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
(...)
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
(...)
Portanto, é indiscutível a competência legislativa para a criação e o processamento da matéria que é objeto do projeto de lei em questão, considerando que da mesma forma que é competência estadual instituir tal imposto também compete ao Estado o dever de legislar sobre tudo o que está atrelado ao referido encargo.
O projeto explanado acima trata da cassação da inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS de qualquer empresa que faça uso direto ou indireto de trabalho escravo ou em condições análogas, ou seja é uma espécie de sensação administrativa para as empresas e empresários que incorrem nessa pratica. O trabalho escravo é um ato milenar tanto quanto é repulsivo, infelizmente, no início Brasil, foi uma atividade muito explorada que com o passar do tempo se tornou ilegal. Contudo, mesmo após anos de luta contra o trabalho escravo e dos resquícios maléficos causados por tal abuso ainda é possível encontrar essa pratica no Brasil.
Na tentativa de inibir o trabalho escravo a legislação brasileira por meio do artigo 149 do Código Penal, tipificou tal pratica como crime sendo punível com pena privativa de liberdade, veja-se:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Assim, o Código Penal foi bem claro sobre a pena para aqueles que praticam a conduta tipificada no artigo acima. Porém, cumpre destacar que a lei não faz qualquer vedação sobre outras sanções de natureza civil ou, como no presente caso, administrativa que também possam serem aplicadas para aqueles que incorrerem nessa prática. Sendo assim, não há nada que impeça a sanção que traz o presente projeto de lei, seja em na esfera federal seja na esfera estadual. Cabe afirmar que o presente projeto nada mais é do que um mecanismo que deverá ser usado para o combate do trabalho escravo ou em condições análogas, é uma tentativa de tornar a sociedade mais justa e igualitária.
Há de ser frisado que o Estado do Ceará foi o primeiro a abolir a escravatura, realizada em 1884, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, sendo por isso reconhecido como Terra da Luz e se comemorando no dia 25 de março a Data Magna do Ceará em alusão a esse acontecimento.
De acordo com o estudo “Trabalho Escravo no Ceará do Século XXI”, apresentado no dia 4 de julho de 2018, no auditório da Unidade do SINE/IDT, do Centro, entre 2007 e 2017 foram resgatados 667 trabalhadores em condições de escravidão no Ceará. Oito em cada dez trabalhadores são do município em que a ação foi deflagrada, e dois terços do problema estão concentrados em dez municípios cearenses, com destaque para Granja, que ocupa o primeiro lugar da lista. Esse trabalho foi fruto da parceria entre Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social, por meio do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (IDT), e da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Direitos Humanos.[1]
Em 2019, sete trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados nos municípios de Fortaleza e Russas, no Ceará, de acordo com levantamento do Radar da Secretaria de Inspeção do Trabalho, vinculada ao Ministério da Economia. A operação foi resultado de três ações fiscais conduzidas no estado no ano de 2019. No mesmo período, o Ministério Público do Trabalho recebeu 12 denúncias e firmou cinco Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) envolvendo o tema.[2]
No que pertine ao trabalho infantil, o Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe em seu artigo 60:
Art. 60. É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz.
No mesmo sentido a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) aduz em seu artigo 403:
Art. 403. É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos.
Portanto, é evidente a preocupação do legislador de proteger e preservar a infância e a adolescência das crianças brasileiras, que por meio do ECA atribui a estes sujeitos uma serie de direitos e proteções com o intuito de proporcionar-lhes uma vida digna e de pleno desenvolvimento. Entretanto, apesar da garantia da infância e da proibição do trabalho infantil, ainda há, infelizmente, nos estados brasileiros a exploração dessa pratica.
No Ceará, de acordo com dados do Ministério Público do Trabalho do (MPT-CE) a agricultura foi a atividade que mais empregou crianças e adolescentes no Estado em 2019. Ainda, de acordo com os referidos dados, em 70 cidades cearenses, quase 9 mil crianças e adolescentes trabalham no contraturno escolar, sendo, a maioria, entre 9 e 13 anos de idade. Conforme o MPT-CE, a pesquisa foi realizada em 418 escolas ocasião na qual foram ouvidos mais de 217 mil estudantes da rede pública com idades entre 9 e 17 anos. A exemplo disso, na cidade de Juazeiro do Norte foram ouvidos 14.390 alunos e desses foram constatados 558 em situação de trabalho. Contudo, apesar desse número, os maiores percentuais de crianças e adolescentes em situação de trabalho foram em outras cidades como Ipaporanga (18,68%), Barreira (18,52%), Campos Sales (16,65%), Ibiapina (14,46%), Hidrolândia (12,38%) e São Benedito (11,59%). [3]
Segundo dados de um levantamento do Ministério da Economia que foram obtidos pelo G1 o número de autuações por trabalho infantil chegou a 153 nos últimos seis anos no Ceará. Nesse período, a Prefeitura de Fortaleza chegou a ser autuada 17 vezes por casos de crianças trabalhando em praças, semáforos e outros locais públicos. O levantamento das informações se deu entre 2013 e outubro de 2019, observando crianças e adolescentes menores de 16 anos sendo vítimas de exploração em serviços com ou sem remuneração. As autuações foram feitas por auditores fiscais da Superintendência Regional do Trabalho do Ceará (SRTB/CE) que foi incorporado à pasta federal no início de 2019.[4]
Destarte, urge no presente projeto de lei a oportunidade do Estado do Ceará em honrar sua história adotando mais uma eficaz ferramenta contra os resquícios da escravidão que subsistem após mais de 132 (cento e trinta e dois) anos.
Saliente-se que o presente projeto de lei não é pioneiro no Brasil, o Estado de São Paulo editou, de forma semelhante, a Lei 14.946/2013 que retira da inscrição do cadastro do ICMS as empresas que forem flagradas se utilizando do trabalho escravo. Essa lei teve repercussão mundial e é considerada por especialistas uma das mais importantes desde a edição da Lei Áurea.
NEZINHO FARIAS
DEPUTADO
[1] https://www.ceara.gov.br/2018/07/04/estado-apresenta-estudo-sobre-o-trabalho-escravo-no-ceara-do-seculo-xxi/
[2] https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2020/01/29/ceara-teve-7-trabalhadores-resgatados-em-condicoes-analogas-a-escravidao-em-2019.ghtml
[3] https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/metro/agricultura-foi-a-atividade-que-mais-registrou-trabalho-infantil-no-ceara-em-2019-1.2208234
[4] https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2019/11/05/ceara-tem-153-autuacoes-por-trabalho-infantil-em-seis-anos.ghtml