PROJETO DE LEI Nº 568/19
“INSTITUI O PROTOCOLO QUE DISCIPLINA AS REMOÇÕES NO ESTADO DO CEARÁ.”
A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ DECRETA:
CAPÍTULO I DISPOSIÇÕES PRELIMINARES
Art. 1º Fica instituído o protocolo que disciplina a realização de remoções de pessoas e famílias de imóveis, terrenos ou locais públicos ou privados no Estado do Ceará.
Parágrafo único. Considera-se remoção toda reintegração ou imissão da posse, desapropriação, remoção de área de risco, despejo ou qualquer outra medida judicial ou administrativa que resulte na retirada de famílias e pessoas de imóveis, terrenos ou locais públicos ou privados.
Art. 2º Todos os atos do Poder Público destinados à realização de desocupações, remoções ou deslocamentos involuntários de pessoas, famílias e comunidades de imóveis, terrenos ou locais públicos ou privados devem observar os seguintes princípios:
I – respeito aos direitos humanos universais;
II – acesso à informação para a população diretamente atingida;
III – promoção do interesse público geral;
IV – razoabilidade, proporcionalidade e necessidade;
V – transparência do projeto por meio de consulta pública que contemple desde os objetivos comprovando o bem comum e as alternativas locacionais, até as possibilidades de recolocação da população atingida em locais próximos ao se local de origem;
VI - controle social;
VII – produção do mínimo impacto possível sobre o bem-estar da população diretamente atingida, bem como de sua vizinhança;
VIII – vedação do uso de violência, sob pena de responsabilização, salvo se praticada em legítima defesa ou em uma das hipóteses de excludente de ilicitude previstas no art. 23, do Decreto-Lei nº 2.848/1940.
Art. 3º A remoção de pessoas, famílias e comunidades de imóveis, terrenos ou locais públicos ou privados, somente poderá ocorrer mediante emissão de mandado judicial por Juízo competente, respeitada a comunicação prévia do ato à população atingida.
§ 1º Fica proibida a realização de remoções durante os finais de semana e feriados respeitadas ainda as normas previstas artigo 5º da Constituição quanto à inviolabilidade de domicílio.
§ 2º Na hipótese de remoção de área considerada de risco, deverá ser apresentado laudo técnico que ateste o risco objetivo do imóvel, elaborado nos últimos 12 meses.
§ 3º É permitida apresentação de contra-laudo ou parecer por parte das pessoas, famílias ou comunidades sob risco de remoção, respeitado o prazo disposto no parágrafo anterior, que deverá ser analisado pela autoridade competente previamente a esta.
Art. 4º Durante a remoção, o Poder Público deverá promover o atendimento habitacional e social às pessoas, famílias ou comunidades, oficiando-se todos os órgãos envolvidos.
§ 1º O disposto no caput deste artigo se aplica à assistência jurídica mediante encaminhamento à Defensoria Pública, caso as pessoas a serem atingidas pela remoção ainda não estejam representadas por advogado no processo judicial que determinou a remoção.
§ 2º Deverá ser realizado o Cadastro Único do Sistema Único de Assistência Social de toda pessoa removida, bem como seu encaminhamento para inscrição em programas de assistência social e de transferência de renda, quando for o caso.
§ 3º Na hipótese de haver crianças, adolescentes, gestantes, idosos, pessoas com deficiência, convalescentes ou outros grupos vulneráveis, devem ser previamente comunicados da remoção o Conselho Tutelar, o Centro de Referência de Assistência Social – CRAS e a unidade básica de saúde, a fim de acompanharem-na.
§ 4º Se a remoção for executada em imóveis, terrenos ou locais públicos em decorrência de intervenção urbana promovida pelo Poder Público, ou por se tratar de área de risco, deverá ser protocolada proposta de reassentamento habitacional submetida à consulta pública, no processo judicial respeitadas a opinião das pessoas, famílias ou comunidades atingidas.
Art. 5º O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 (noventa) dias de sua entrada em vigor.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
RENATO ROSENO
DEPUTADO ESTADUAL
PSOL/CE
Justificativa
O projeto encontra respaldo na Constituição Federal, especialmente em seu art. 1º, III, que assim dispõe:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III a dignidade da pessoa humana;
Ademais, o projeto busca, também, garantir direito considerado fundamental pela Carta Magna, qual seja, o direito à moradia.
Com efeito, nos termos do art. 6º, da Constituição Federal, o direito à moradia encontra- se arrolado dentre os direitos fundamentais sociais.
Ressalta-se que o art. 23, IX, da Constituição Federal determina que é competência comum da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básicos.
Conflitos urbanos são uma realidade, oriundos, sobretudo, da desigualdade social e territorial que marca o desenvolvimento de grandes centros. Nos conflitos em que se pretende resguardar o direito de propriedade, geralmente a Justiça é acionada para reconhecê-lo e então determinar aos aparatos do Estado que efetivem-no.
O resultado de quase todos esses conflitos é a remoção, por diversos instrumentos judiciais, de famílias em situação de vulnerabilidade social e que lutam por sua moradia, constituindo-se muitas vezes em maior prejuízo não só às populações envolvidas, mas também ao poder executivo que não se prepara para agir na situação e acaba por ter que agir de forma improvisada e emergencial e construindo soluções não planejadas, mais custosas e sem resultado sustentável.
Em 1992, foi ratificado pelo Brasil o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), o qual consubstancia diversos direitos já consagrados pela Declaração Universal de 1948, estando dentre eles o direito à moradia adequada, indispensável para que o homem possa desfrutar de um nível de vida adequado. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966)
O Conselho Econômico e Social da ONU instituiu, em 1985, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas. Este Comitê, por sua vez, percebendo a gravidade das situações de despejos forçados, a partir da análise de casos concretos que foram relatados ao Comitê, editou, em 1997, um Comentário Geral que tratou especificamente dessas situações: o Comentário Geral n. 7. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comentário Geral n. 7 sobre o Direito à Moradia Adequada e Despejos Forçados, 1997).
Não obstante os despejos forçados terem sido amplamente reconhecidos internacionalmente como uma grave violação dos direitos humanos, o Comitê reconhece no texto deste Comentário Geral, a existência de uma lacuna crucial, que pode ser sintetizada nas seguintes perguntas: Sob quais circunstâncias as remoções são permitidas? Quais são os tipos de proteção que devem ser fornecidos, nestes casos, para que as disposições das convenções internacionais não sejam violadas?
Buscando esclarecer essas questões, o Comentário Geral n. 7 discorre inicialmente acerca da terminologia "despejos forçados", e estabelece o conteúdo do conceito adotado da seguinte forma:
[...] despejos forçados definem-se como o fato de fazer indivíduos, famílias e/ou comunidades saírem das casas e/ou terras que ocupam, de forma permanente ou temporária, sem oferecer formas adequadas de proteção legal, ou de outra natureza, nem permitir o acesso a elas. (...) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS.
Comentário Geral n. 7 sobre o Direito à Moradia Adequada e Despejos Forçados, 1997, item 3, tradução livre) .
A Ficha Informativa das Nações Unidas n. 25 trata sobre os despejos forçados e ressalta o caráter involuntário dessas remoções, afirmando que ninguém se oferece para ser despejado. É, portanto, sempre um ato praticado contra a vontade das pessoas que habitam determinado espaço, envolvendo força ou coação.
No ano de 2000, a Comissão de Direitos Humanos - hoje Conselho de Direitos Humanos da ONU - decidiu nomear um Relator Especial para o Direito à Moradia Adequada. O objetivo de seu mandato é relatar a situação, ao redor do mundo, do direito à moradia e outros direitos a ele relacionados; promover cooperação e assistência entre governos, ONU e organizações não governamentais em seus esforços para garantir esse direito; e elaborar recomendações sobre a concretização dos direitos relevantes para o mandato.
Em 2004, o Relator Especial dedicou seu relatório anual ao tema das remoções e despejos forçados e, em 2007, elaborou os Princípios Básicos e Orientações para Remoções e Despejos Causados por Projetos de Desenvolvimento. Seus objetivos são fornecer orientações e assistência técnica aos Estados sobre como atuar nos casos de remoções e despejos involuntários, seguindo os padrões internacionais e respeitando aos direitos da população atingida. São estes:
Não importa a forma legal da residência – as pessoas devem receber proteção mesmo se não tiverem título ou documentação formal relacionados à sua casa ou terra;
Remoções e despejos forçados devem ocorrer apenas em “circunstâncias excepcionais”, ou seja, em casos absolutamente necessários que envolvam proteção da saúde e do bem-estar coletivos, e quando não há alternativas viáveis;
Algumas remoções podem ser consideradas necessárias, como, por exemplo, no caso de pessoas vivendo em áreas sujeitas a desabamentos e inundações iminentes;
Toda remoção deve: (a) ser autorizada por lei; (b) ser levada a cabo em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos; (c) ser realizada apenas com o objetivo de promover o interesse público geral; (d) ser razoável e proporcional; (e) ser regulada de forma a garantir indenização justa e reinserção social;
Os casos de remoções consideradas legítimas devem sempre estar relacionados a obras que sejam de relevante interesse público. O interesse público, neste caso, deve sempre ser estabelecido de forma participativa, dando atenção e considerando realmente as visões daqueles que vivem nas áreas que serão impactadas. Um projeto de interesse público nunca deve deteriorar as condições de vida das comunidades atingidas;
Além disso, a análise quanto à necessidade e adequação de um projeto de infraestrutura e urbanização deve ser feita de forma transparente, com espaço para apresentação de alternativas. Todos aqueles que potencialmente serão afetados devem receber informação adequada e oportuna, participar democraticamente, e propor alternativas que minimizem os deslocamentos e reduzam os impactos negativos sobre as vidas das pessoas. Projetos que determinam a remoção sem que os atingidos tenham sido envolvidos no planejamento e nos processos decisórios, não cumprem com os padrões internacionais de direitos humanos;
As remoções e os despejos forçados são considerados ilegais quando realizados com uso de força física ou violência. Mas também as remoções “pacíficas” podem ser consideradas ilegítimas quando realizadas sem justificativa legal ou sem os procedimentos adequados;
Além de evitar ao máximo remoções desnecessárias e respeitar os direitos das comunidades que tiverem que ser removidas, os governos têm também a responsabilidade de proteger as pessoas contra despejos forçados que sejam realizados por terceiros. Ou seja, sem eximir o particular de sua responsabilidade pelos danos causados, o Estado, em suas funções executivas, legislativas e judiciais, é responsável por não ter impedido que o despejo acontecesse.
O Sistema de Justiça, provocado para garantir o direito de propriedade, muitas vezes não consegue efetivar os direitos humanos das pessoas removidas.
São recorrentes os relatos de ações de reintegração de posse, despejo ou remoções de área de risco que usam de violência e aprofundam as condições de vulnerabilidade social de milhares de famílias. Agressões e destruição de bens estão entre as situações de violência mais recorrentes.
De acordo com dados do Laboratório de Estudos da Habitação – UFC[1], coletados de 2009 até setembro de 2017 apontam que mais de 28 mil famílias sofreram ameaça ou foram removidas na região metropolitana de Fortaleza (RMF), sendo quase 23 mil, só em Fortaleza. Deste total foram removidas de fato mais de 13 mil famílias na RMF e mais de 11.700 em Fortaleza. Só este ano foram mais de 1.440 famílias removidas em Fortaleza. Importante destacar que a cidade de Fortaleza tem hoje mais de 160 mil famílias cadastradas na Habitafor para receber uma unidade habitacional.
Além da violência, a falta de oferta de serviços para atenção às famílias nas remoções acentua a desigualdade, deixando a dignidade dos mais pobres ainda mais ameaçada. Crianças, por exemplo, são retiradas de onde vivem e muitas vezes têm que ser transferidas de escola e sofrem com a distância entre a nova casa e o colégio.
Portanto, deve ser papel do Poder Público atuar para reduzir os efeitos das remoções. Cadastro em programas sociais, inserção na política habitacional, articulação para se garantir a educação de crianças e adolescentes são algumas medidas que podem auxiliar as pessoas que tenham que sair de onde vivem.
Por essa razão, proponho a instituição deste Protocolo para Remoções, construído a partir dos relatos e dados de atores que atuam nessas situações, o qual parametriza a necessária observância de princípios e diretrizes, centraliza as informações e define os procedimentos para a realização de remoções de famílias em espaços públicos e privados, valorizando mecanismos de mediação de conflitos, que garantam os direitos humanos da população afetada e evitem a violência do Estado.
RENATO ROSENO
DEPUTADO ESTADUAL
PSOL/CE
[1] http://www.lehab.ufc.br/wordpress/observatorio-das-remocoes/mapeamento/ . Acesso em 24 de setembro de 2019.