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PROJETO DE LEI N° 420/19

“INSTITUI O PROGRAMA PARA REEDUCAÇÃO DE AGRESSOR DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR, ESTABELECE DIRETRIZES PARA A CRIAÇÃO DOS SERVIÇOS DE REEDUCAÇÃO DO AGRESSOR, E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.”

 

A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ decreta:

Art. 1º Fica instituído o Programa para Reeducação de Agressor de Violência Doméstica e Familiar, com o objetivo de reduzir e prevenir a reincidência do agente de violência, na esfera doméstica e familiar.

Parágrafo único. O Programa previsto nesta Lei será executado pelo Governo do Estado em parceria com os Poderes Judiciário e Legislativo, o Ministério Público, a Defensoria Pública do Estado e a Ordem dos Advogados.

Art. 2º Considera-se agressor de violência doméstica e familiar, para efeitos desta lei, em consonância com o que dispõe a Lei Federal nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha, todo o agente que, por ação ou omissão, cause sofrimento ou violência física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral:

I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Art. 3º Para os fins de aplicação desta Lei, entende-se por:

I – violência física: qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da ofendida;

II – violência psicológica: qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima da ofendida, ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III – violência sexual: qualquer conduta que constranja a ofendida a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade; que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV – violência patrimonial: qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos da ofendida, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V – violência moral: qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria à ofendida.

Art. 4º São princípios norteadores do Programa previsto nesta Lei:

I – responsabilização, em seus aspectos legal, cultural e social;

II – igualdade e respeito à diversidade e às questões de gênero;

III – observância à garantia dos direitos universais;

IV – promoção e fortalecimento da cidadania;

V – respeito aos direitos e deveres individuais e coletivos.

Art. 5º São diretrizes para a efetivação do Programa previsto nesta Lei:

I – instituição de serviços de responsabilização e reeducação do agressor com atuação por meio de grupos reflexivos, coordenados por equipes multidisciplinares;

II – autonomia técnica das equipes multidisciplinares em relação à escolha da fundamentação teórica, das dinâmicas de grupo utilizadas e da ordenação e seleção dos temas a serem abordados, que deverão tratar, no mínimo, de:

a) Lei Maria da Penha;

b) violência contra a mulher e as diversas causas associadas a ela, sob os aspectos social, cultural e religioso; desemprego e desorganização do espaço urbano;

c) saúde relacionada a questões de alcoolismo, drogas, doenças sexualmente transmissíveis e transtornos mentais;

d) relações familiares e aspectos emocionais das relações a dois;

e) valores essenciais da convivência civil, como a dignidade da pessoa, a confiança mútua, o bom uso da liberdade, o diálogo, a solidariedade, a obediência e respeito à autoridade;

f) violência doméstica e familiar contra qualquer pessoa, independentemente de sua orientação sexual;

III – promoção de atividades educativas e pedagógicas, buscando a conscientização dos agressores quanto à violência cometida como violação dos direitos humanos das mulheres, ou qualquer pessoa em decorrência de sua orientação sexual, a partir de uma abordagem responsabilizante;

IV – fornecimento de informações permanentes sobre o acompanhamento dos agressores ao juízo competente, por meio de relatórios e documentos técnicos pertinentes;

V – encaminhamento dos agressores para atendimento psicológico e serviços de saúde mental, quando necessário;

VI – avaliação e monitoramento permanentemente dos serviços prestados;

VII – formação continuada das equipes multidisciplinares envolvidas no acompanhamento dos agressores.

§1º Os acompanhamentos dos grupos reflexivos serão realizados por pelo menos 2 (dois) integrantes da equipe multidisciplinar, em grupos de até 20 (vinte) membros, e em no mínimo 20 (vinte) encontros, com periodicidade semanal.

§2º Para a condução dos grupos reflexivos serão designados, sempre que possível, profissionais do sexo masculino.

§3º Os agressores, que assim o desejarem, poderão permanecer sendo acompanhados após o término do trabalho do respectivo grupo reflexivo.

§4º Os grupos reflexivos não poderão acompanhar demandas espontâneas de homens envolvidos em violência conjugal, não obstante estes possam ser encaminhados a núcleos específicos de ajuda ou avaliados para participação em grupo reflexivo que venha a ser formado posteriormente.

§5º Os grupos reflexivos não realizarão atendimento psicológico e jurídico aos agressores.

§6º Não poderão ser acompanhados pelos grupos reflexivos os agressores:

a) que estiverem com sua liberdade cerceada;

b) acusados de crimes sexuais;

c) dependentes químicos com comprometimento;

d) portadores de transtornos psiquiátricos;

e) autores de crimes dolosos contra a vida;

f) participantes que apresentem comportamento prejudicial ao funcionamento do grupo.

§7º O Juízo competente deverá ser informado das ocorrências de contraindicação à inserção ou permanência de autores de agressão nos grupos reflexivos, sugerindo o encaminhamento para serviços especializados da rede social.

Art. 6º As despesas decorrentes da aplicação desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias.

Art. 7º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

 

EVANDRO LEITÃO

DEPUTADO

           

JUSTIFICATIVA

Inicialmente, cumpre ressaltar que a matéria em tela, que pretende instituir como política pública a Reeducação de Agressor de Violência Doméstica e Familiar, insere-se na competência legislativa estadual, na medida em que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, zelar pela Constituição Federal, que traz como princípios fundamentais o respeito à dignidade da pessoa humana e a construção de uma sociedade justa e solidária.

Além disso, nos termos do disposto pelo artigo 226, § 8º da nossa Carta Magna, é dever do Estado assegurar assistência à família, criando mecanismos para coibir a violência de suas relações.

É importante frisar, também, que a proposição ora apresentada não pretende legislar sobre direito penal, restringindo-se a criar condições, no âmbito do Estado, para o cumprimento da pena restritiva de direito introduzida pela Lei federal nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, na Lei de Execuções Penais, conforme segue:

Art. 152 [...]

Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.

A proposição, na verdade, busca dar unicidade às ações dos Poderes Públicos no combate à violência doméstica e familiar, na esteira do que preceitua a Lei Maria da Penha, conforme segue:

Art. 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por diretrizes:

I – a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação;

Art. 35 A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências: […]

V – centros de educação e de reabilitação para os agressores.

Art. 36 A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus programas às diretrizes e aos princípios desta Lei.

Por fim, cabe ressaltar que a proposição não invade competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, na medida em que não inova em relação à estrutura e organização dos órgãos públicos ou ao regime de seus servidores, restringindo-se a estabelecer diretrizes para ampliação e uniformização de trabalho que já vem sendo realizado com muito êxito pelas Varas Especializadas do Poder Judiciário, pelo Ministério Público e por algumas Unidades da Federação, que é o acompanhamento da aplicação de pena que visa à educação e à reabilitação dos agressores, e a consequente redução da reincidência dos mesmos em crime de tamanha gravidade.

No Brasil, dados estatísticos revelam a ocorrência de quase cinco assassinatos a cada cem mil mulheres, o que equivale a treze homicídios femininos por dia, número que coloca o país no 5º lugar no ranking mundial[1].

Segundo o "Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil", do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, dos 4,8 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex-parceiro.

Em relação às agressões físicas os números são ainda mais alarmantes.

Pesquisa de 2014 realizada pelo Instituto Avon, com apoio do Instituto Data Popular, cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos no país, sendo que em mais de 80% dos casos reportados, o parceiro ou ex-parceiro é o responsável pela agressão.

Neste cenário, é cediço que a violência doméstica não pode ser tratada da mesma maneira que os demais tipos de violência, posto que agravada pelo véu das relações pessoais e familiares que a acobertam, e pela dependência econômica e por vezes sentimental da vítima.

A Lei Maria da Penha teve o mérito de trazer a público um problema antes tratado como se privado fosse. Por meio dela, o Estado deixou de ver a violência doméstica como crime de menor potencial ofensivo, passando a dispor sobre uma série de medidas protetivas em favor da mulher vítima de agressão no âmbito doméstico e familiar, e abolir as penas pecuniárias, determinando a prisão preventiva e em flagrante dos agressores.

Todavia, a mera aplicação da lei penal aos casos de violência doméstica, sem a contrapartida social necessária para uma efetiva mudança no cenário familiar das vítimas e dos agressores, não tem sido suficiente para o efetivo combate a esse tipo de violência.

Por óbvio, alguns crimes perpetrados no âmbito doméstico, por sua gravidade, clamam pela aplicação de penalidade mais rígida – de privação de liberdade – para reter a banalização da violência doméstica. Porém, em muitos outros casos, se faz necessária a adoção de formas diferenciadas de enfrentamento, capazes de coibir a violência e reparar os danos sofridos, sem passar pelo aprisionamento do agressor, o que, por sua vez, contribui para o desafogamento do sistema carcerário.

Isto porque as raízes dessa violência se encontram nos estereótipos construídos culturalmente ao longo dos séculos sobre as diferenças entre homens e mulheres e os supostos papéis que os mesmos devem desempenhar na sociedade. É necessário, portanto, que essa cultura seja transformada no âmbito educacional, complementado as mudanças legislativas, que, por si só, são insuficientes.

A Lei Maria da Penha tem contribuído em muito para alterar, paulatinamente, essa realidade. Porém, após mais de dez anos de sua promulgação, muitas das políticas públicas por ela previstas não foram ainda plenamente concretizadas, dentre elas os centros de educação e de reabilitação de agressores.

Aliás, em reflexão resultante de discussões realizadas por diferentes Ministérios e representantes da sociedade civil em workshop realizado em 2008, operou-se um avanço em relação à Lei Maria da Penha, relatado pela Secretaria de Política para as Mulheres do Governo Federal no documento “Diretrizes para Implementação dos Serviços de Responsabilização e Educação dos Agressores”.

Segundo referido documento, optou-se por utilizar o termo ‘serviço’ para se referir ao previsto no art. 45 da Lei Maria da Penha, que prevê a obrigatoriedade do comparecimento do agressor a programas de reeducação, em contraposição ao proposto no art. 35 do citado diploma legal, que faz menção à criação de Centros de Educação e Reabilitação do Agressor. Isto porque a concepção de um ‘centro’ traz em seu bojo a ideia de um espaço de atendimento ao agressor, nos moldes do que é realizado pelos Centros de Referência da Mulher e Centros de Referência de Assistência Social, sendo que o objetivo precípuo do serviço de responsabilização e educação do agressor é o acompanhamento das penas e decisões proferidas pelo juízo competente no que tange ao agressor, com caráter obrigatório e pedagógico e não assistencial ou de ‘tratamento’ do agressor.

É de se ressaltar que o artigo 30 da Lei Maria da Penha prevê a instalação de equipe multidisciplinar que deve atuar nos casos de violência doméstica e familiar, junto aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com o objetivo de desenvolver a orientação, o encaminhamento, a prevenção e outras medidas, voltadas tanto para a ofendida e seus familiares, quanto para o agressor.

Verifica-se, portanto, que o intuito da Lei nº 11.340/06 é resgatar não somente a dignidade das mulheres vítimas de violência doméstica, mas também a dignidade da família como um todo.

Diante disso, a presente proposição procura trazer as diretrizes para a efetiva implantação dos serviços de responsabilização e educação do agressor, de maneira a garantir uniformidade de atuação dos diversos atores envolvidos, assim como a promoção de atividades educativa e pedagógicas destinadas à discussão e conscientização dos agressores, objetivando a modificação de comportamentos de modo a eliminar a chamada “cultura do machismo”.

No Estado do Ceará, o aparato para enfrentamento da violência doméstica contra a mulher vem crescendo, principalmente no âmbito do Poder Judiciário, do sistema de segurança pública, do Ministério Público e da Defensoria Pública.

Além disso, é fato que o Estado do Ceará tornou-se signatário do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, o que representa um passo importante em direção ao equacionamento do problema.

No entanto, as recomendações e resoluções das instâncias de discussão de política para mulheres ainda não alcançaram status de política pública no Estado do Ceará, de forma a fortalecer mecanismos de atuação do Poder Público, otimizando recursos e potencializando resultados pela atuação conjunta das diversas instâncias e esferas de Poder.

A parceria entre os Poderes Públicos e os demais atores envolvidos no combate à violência doméstica é imprescindível para a maximização das políticas já adotadas e para a efetiva implantação dos Serviços de Responsabilização e Educação do Agressor em todo o Estado, fortalecendo, assim, o enfrentamento dessa profunda ferida social, que é a violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Diante de todo o exposto e, considerando o legítimo interesse público da proposição, esperamos contar com o apoio dos meus Nobres Pares, Senhoras Deputadas e Senhores Deputados, para que, no uso de sua habitual sabedoria, aprovem o presente Projeto de Lei.

[1]     Fonte: https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo-diretrizes-nacionais-buscam-solucao/amp/

 

EVANDRO LEITÃO

DEPUTADO