PROJETO DE LEI N.º 402/19
“RECONHECE A EXISTÊNCIA, CONTRIBUIÇÃO E OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS NO ESTADO DO CEARÁ, NA FORMA QUE INDICA.”
A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO CEARÁ
D E C R E T A:
Art. 1.º Na forma do Capítulo VIII da Constituição Federal, em acordo com a Lei Federal n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o Decreto n° 1.775, de 8 de janeiro de 1996, e o art. 282 da Constituição do Estado do Ceará, ficam reconhecidas a existência, a contribuição e os direitos dos povos indígenas no Estado do Ceará.
Parágrafo único. Fica declarada a inestimável contribuição da cultura indígena para a formação da sociedade cearense, notadamente no que se refere à formação do nosso patrimônio cultural, conforme artigo 216 da Constituição Federal.
Art. 2.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
RENATO ROSENO
DEPUTADO
JUSTIFICATIVA
Os Direitos e Garantias Fundamentais são a sustentação de todo o ordenamento jurídico, e é através de seu cumprimento que se busca alcançar o desenvolvimento social, político e jurídico do país. O direito ao desenvolvimento das comunidades indígenas é considerado direito fundamental implícito em decorrência dos princípios constantes na Constituição Federal de 1988 e dos tratados internacionais incorporados pela legislação pátria, como é o caso da Convenção n°169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.
A demarcação das terras indígenas e o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições estão normatizados no art. 231 da Constituição Federal de 1988, que afirma o direito dos povos originários às terras que tradicionalmente forem ocupadas por eles. A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas determina em seu artigo 11.2 que:
“Os Estados proporcionarão reparação por meio de mecanismos eficazes, que poderão incluir a restituição estabelecida conjuntamente com os povos indígenas, respeito dos bens culturais, intelectuais, religiosos e espirituais, de que tenham sido privados sem seu consentimento livre, e informação prévia, ou na violação de suas leis, tradições e costumes.”
Durante mais de 500 anos os indígenas vêm sendo violentados em sua cultura, vida e na usurpação de suas terras, tendo muitas vezes que se esconder e negar sua história por uma questão de sobrevivência. No Ceará, somente no final da década dos anos de 1970, através da mobilização dos índios Tremembé e Tapeba, com mediação da ONG Missão Tremembé, da Igreja Católica e das universidades, é que se iniciaram as articulações em torno da garantia de direitos desses povos. Desde então, os indígenas vêm em um processo de autorreconhecimento e de luta pela demarcação de seu território.
Segundo o estudo1 realizado pela Associação para o Desenvolvimento Local Co-produzido (Adelco) junto ao Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar, com o apoio financeiro da União Europeia, entre 2016 e 2017, o Ceará possuía uma população de 32.000 índios e mais de 14 povos2. No entanto, até o momento, apenas uma terra indígena foi homologada no estado, tendo outros processos de demarcação sido judicializados por serem contestados por aqueles que possuem interesse financeiro nesses territórios.
Durante a abertura das atividades do ano de 1863 da Assembleia Provincial, relatório provincial assinado pelo presidente da província José B. C. Figueiredo Júnior, declarou não existir no Ceará índios aldeados ou bravos, afirmando que, entre os que aqui habitavam, uma parte foi dizimada e a parte restante migrou ou se descaracterizou.
“Das antigas tribus de Tabjaras, Cariris e Potiguaris, que habitavam a província, uma parte foi destruída, outra emigrou e o resto constituiu os aldeamentos da Serra da Ibiapaba, que os Jesuitas no principio do seculo passado formaram em Villa Viçosa, S. Pedro de Ibiapina, e S. Benedicto com os índios chamados Camussis, Anacaz, Ararius e Acaracú, todos da grande família Tabajara. Com a extinção dos Jesuítas, que os governavam theocraticamente, decahiram esses aldeamentos, e já em 1818 informava um ouvidor ao governador Sampaio que os indios iam-se extinguindo na Ibiapaba, onde tinham aqueles religiosos um celebre hospício no lugar denominado Villa Viçosa, que com os outros acima indicados abrangem a comarca deste nome. E nelles que ainda hoje se encontram maior número de descendentes das antigas raças; mas andam-se hoje misturados na massa geral da população.”
No entanto, o mesmo documento, em clara contradição, reconhece a posse legítima, pelos índios, de nada menos que 80% das terras regularizadas no período: “Até o fim do ano de 1862 legitimaram-se 145 posses incluindo-se neste número 120 para índios e 06 aforamentos”3.
Mesmo diante de toda a normatização acerca do reconhecimento constitucional contemporâneo “dos índios, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”4, o relatório provincial de 1863 ainda agrega peso na legitimação do discurso da extinção dos indígenas no Estado do Ceará. Como bem coloca a pesquisadora Ticiana Antunes5:
“Não podemos negar também que, pelo menos do ponto de vista simbólico, a ideia do desaparecimento das populações autóctones vingou, tanto que se questionarmos a maioria dos cidadãos cearenses nos dias atuais sobre a presença indígena no estado, o resultado seria quase unânime: os índios não existem, os remanescentes foram misturados ao restante da população.
Já vimos que no âmbito local o século XIX foi marcado pelo aumento do assédio das terras indígenas por parte da elite, que ocupava cargos públicos, intensificando a legalização da espoliação. A alegação era a mesma da burocracia estatal: abandono das aldeias por parte dos índios e a mistura com os civilizados.”
Segundo Isabelle Silva³, a força da ideologia, que sustentou o interesse fático das elites na expropriação das terras indígenas, transformou um simples relatório provincial no “decreto da extinção”, como o dito relatório ficou conhecido. E foi reproduzido pela historiografia por mais de um século, contribuindo decisivamente para a negação da presença indígena em nosso Estado.
A presente proposição visa afirmar que os povos indígenas no Ceará, no passado, não foram extintos – como querem as ideologias de ontem e de hoje. E também quer reafirmar a existência desses povos no presente, assim como seus direitos, não deixando dúvidas quanto à sua importância social, cultural e ambiental. Desta forma, peço o auxílio dos meus pares na aprovação deste projeto de lei, que representa a reparação de uma dívida histórica da sociedade cearense para com esta população.
1 Diagnóstico e Estudo de Linha de Base: Relatório Final do Projeto Urucum Fortalecendo a Autonomia Político-Organizativa dos Povos Indígenas.
2 Tapeba, Tabajara, Potyguara, Pitaguary, Tremembé, Anacé, Kanindé, Tapuia-Kariri, Jenipapo-Kanindé, Kalabaça, Tubiba-Tapuia, Kariri, Gavião e Tupinambá.
3 SILVA, Isabelle B. P. O Relatório Provincial de 1863 e a expropriação das terras indígenas. In: PACHECO DE OLIVEIRA, J. (Org). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.
4 Art. 231 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
5 ANTUNES, Ticiana de Oliveira. 1863: o ano em que um decreto - que nunca existiu - extinguiu uma população indígena que nunca deixou de existir. Aedos n. 10 vol. 4 - Jan/Jul 2012.
RENATO ROSENO
DEPUTADO